Recursos para pequenos produtores, imagem no exterior, produção sustentável: especialistas apontam desafios de Lula no agro

Recuperar o orçamento de políticas da agricultura familiar, investir em sustentabilidade e melhorar a imagem do agronegócio no exterior são alguns dos desafios do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para o setor, de acordo com especialistas consultados pelo g1.

A expectativa é de que as políticas agrícolas, em especial o apoio a pequenos e médios produtores, contribuam para as ações de combate à fome, compromisso que Lula elegeu como o mais urgente.

 

Para os especialistas, alguns dos desafios dos próximos 4 anos na agropecuária serão:

  • Aumentar o orçamento das políticas de compra de alimentos da agricultura familiar: um deles é o Alimenta Brasil, antigo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que vem sofrendo uma forte redução de recursos nos últimos anos. Essa política, que chegou a ter um orçamento de R$ 1 bilhão (em 2012), tem apenas R$ 2,6 milhões reservados para o próximo ano;
  • Reabastecer os estoques públicos de alimentos: é uma das promessas de Lula para combater a inflação e a insegurança alimentar. Essas reservas foram sendo progressivamente esvaziadas desde 2015 e, para serem retomadas, será preciso estimular o aumento da produção de alimentos básicos, como o arroz e o feijão, que perderam área de plantio para grãos de exportação (soja e milho).
  • Melhorar a imagem do agronegócio no exterior: essa frente envolve retomar e melhorar a diplomacia do Brasil com os governos de outros países, abalada nos últimos anos pela gestão do atual presidente Jair Bolsonaro. Além disso é preciso ações práticas, como combate ao desmatamento e fortalecimento das políticas de redução da emissão de poluentes na produção;
  • Fazer uma transição para uma agricultura sustentável: hoje, um dos programas federais para reduzir a emissão de poluentes da agropecuária é o Plano ABC, que consiste em conceder financiamento a agricultores que têm projetos de produção sustentável. Porém, especialistas avaliam que a iniciativa ainda é tímida.

 

Veja mais detalhes a seguir.

Aumento de recursos para políticas da agricultura familiar

 

Em seu plano de governo, Lula destacou que o apoio à agricultura familiar deve ser um dos pilares para combater a fome, que hoje atinge 33 milhões de pessoas.

Os pequenos e médios agricultores produzem boa parte do que chega à mesa dos brasileiros, sendo responsável por dois terços da produção de frutas, legumes e verduras no país.

“O cenário que a gente tem hoje é de desmonte das políticas públicas para a agricultura familiar. Nós perdemos recursos orçamentários em diversas áreas”, diz o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Aristides Veras dos Santos, que está na equipe de transição de Lula.

 

Um dos programas que teve queda de recursos foi o Alimenta Brasil. Ele foi implementado em 2021 pelo governo Bolsonaro, em substituição ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, durante o 1º mandato de Lula.

A política pública prevê a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar para doação a pessoas em situação de insegurança alimentar, escolas, hospitais, etc.

A maior transferência de recursos para o programa ocorreu em 2012, quando ele recebeu R$ 1 bilhão. Nos anos seguintes, os valores foram menores, mas o corte de orçamento se aprofundou a partir de 2016, quando o governo direcionou apenas R$ 609,3 milhões ao PAA.

Em 2021, a ação chegou a receber R$ 135,2 milhões. Já neste ano, foram disponibilizados R$ 679,5 milhões, dos quais apenas 240,8 milhões foram reservados para execução.

O orçamento previsto para o próximo ano é ainda menor: R$ 2,6 milhões, de acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023, enviado ao Congresso pelo presidente Jair Bolsonaro.

Santos, da Contag, diz que o programa deveria ter, no mínimo, R$ 1 bilhão. Para ele, o novo governo deve propor um aumento no orçamento de 2024, que só será discutido no ano que vem. A Contag, porém, tem dialogado com o Congresso Nacional para tentar obter alguma recomposição já para 2023.

“A pauta do PAA tem um bom apelo no Congresso, faltava só o apoio do Executivo”, afirma.

 

Mesmo com o orçamento federal apertado, propor um aumento de recursos não deve ser um grande problema, avalia o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Nierdele, especialista em sistemas alimentares e desenvolvimento rural.

“O PAA não é um programa caro. O orçamento dele sempre foi, aliás, muito acanhado. Então, eu acredito que não é neste programa onde o governo vai encontrar grandes problemas”, diz.

Agricultores mais vulneráveis e diversificação de alimentos

 

Fortalecer a agricultura familiar não se restringe a uma questão orçamentária, destaca Paulo Petersen, especialista em políticas públicas de produção de alimentos e membro da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Segundo ele, uma das coisas que mudou ao longo dos anos foi a redução da diversidade dos alimentos adquiridos.

Até por volta de 2014, o governo organizava as suas compras de acordo com o que os agricultores familiares disponibilizavam, diz Petersen. “Essa concepção mudou e o governo passou a definir o que os produtores deveriam entregar”.

 

“Isso teve um efeito ruim, primeiro porque você passou a selecionar a parcela da agricultura familiar mais estruturada, que tinha capacidade de dar resposta a essa demanda. E deixou de comprar alimentos dos agricultores mais empobrecidos, menos estruturados”.

Reabastecer os estoques públicos de alimentos

 

Os estoques públicos de alimentos já existem no Brasil, mas foram esvaziados nos últimos anos (veja abaixo os gráficos).

Em seu plano de governo, Lula destacou que a retomada dessas reservas será um dos pilares do combate à inflação de alimentos, que corroeu o orçamento dos brasileiros nos últimos anos.

A ideia dessa política é que o governo compre alimentos dos agricultores para depois vender ao comércio, incentivando o aumento da oferta e, portanto, a queda de preços.

Outros especialistas ouvidos pelo g1 discordam do uso dos estoques para combater a inflação e apontam que o custo de manutenção é um desafio (saiba mais).

O executivo federal pode reabastecer os estoques sem depender do Congresso, diz Nierdele, da UFRGS. Mas, para ele, não será algo possível de ocorrer no curto prazo.

Para reabastecer os estoques, será necessário, primeiro, estimular o aumento da produção de alimentos básicos, como o arroz e feijão, que perderam muita área para grãos de exportação, como soja e milho, nos últimos anos, diz Nierdele.

 

Para ele, o mecanismo de indução mais forte é o crédito, o que pode ser feito via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que é a principal fonte de financiamento da agricultura familiar.

Ele defende juros mais baixos para o programa e acredita que as taxas podem ser, inclusive, zeradas para a produção de alimentos da cesta básica e cultivo de orgânicos.

Contudo, essa não será uma decisão fácil, diz Nierdele. Isso porque, para ele, o crédito agrícola ainda está muito concentrado nos produtos de exportação (soja e milho, por exemplo) do que para os alimentos básicos e orgânicos. Portanto, teria que haver uma inversão da lógica, diz.

 

Imagem do agronegócio no exterior e o meio ambiente

 

Um outro desafio imediato do novo governo será melhorar a imagem do agronegócio brasileiro no exterior, enquanto as pressões por sustentabilidade começam a se traduzir em medidas concretas.

No Parlamento Europeu, por exemplo, tramita um projeto de lei que prevê a proibição da compra de produtos de áreas desmatadas, a partir de 2025. O texto final deve ser aprovado no final deste ano.

“Está cada vez mais difícil para o agronegócio brasileiro ficar associado ao desmatamento e às emissões de poluentes. Se a gente não avançar nessa performance, vai ser muito difícil limpar a imagem do agro fora do Brasil”, diz a diretora-executiva do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Marina Piatto.

 

Ela participa neste momento da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27) e diz que os ambientalistas estão mais otimistas com o novo governo.

“Lula é um governo mais aberto, mais pró-ambiente, que dialoga mais com a sociedade civil e que permite a participação da ciência”, afirma.

O presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Caio Carvalho, diz, por sua vez, que o problema hoje está na comunicação com a sociedade civil de outros países e não com os seus respectivos governos e empresas, por exemplo.

“A agricultura brasileira é extremamente competitiva, não só em produtividade, mas também na questão de sustentabilidade. […] Isso tudo está documentado e a inteligência de outros países tem acesso a esses dados. Então, não se trata de um desconhecimento”, afirma.

 

Em carta, a entidade defendeu a retomada da diplomacia brasileira “para tratar das questões da geopolítica global, defendendo os interesses nacionais”, e o “combate ao desmatamento de áreas ilegais nos biomas brasileiros, especialmente na Amazônia”.

Para ao ex-ministro da Agricultura (2003-2006) Roberto Rodrigues, coordenador da FGVAgro, a retomada da comunicação com outros países é importante, mas que esta “precisa mostrar a verdade dos fatos”.

Ele afirma que quem desmata hoje no Brasil não é o agronegócio profissional, mas sim “aventureiros que não tem a ver com o agro”.

“Infelizmente, houve um aumento do desmatamento ilegal no passado que manchou a imagem do agro brasileiro. Hoje, o desmatamento [ilegal] está coibido. E o [ministro do Meio Ambiente] Joaquim Leite tem trabalhado nisso e começou a fiscalizar e está praticamente eliminado”, acrescenta Rodrigues.

 

Leite assumiu o Ministério do Ambiente em junho de 2021, após o então líder da pasta Ricardo Salles (PL) ser exonerado do cargo, depois de ter sido alvo de investigação de um esquema de exportação ilegal de madeira.

Em abril de 2020, Salles chegou a sugerir a Bolsonaro que o governo aproveitasse que a imprensa estava voltada para a pandemia da Covid-19 para “ir passando a boiada” na área ambiental, flexibilizando regras para o setor.

De janeiro a agosto deste ano, a Amazônia Legal teve a maior taxa de desmatamento em 15 anos, mostram dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Foram 7.943 km² de floresta derrubada, o que equivale a aproximadamente cinco vezes a cidade de São Paulo.

Mais recursos para reduzir a emissão de poluentes

 

No Brasil, depois do desmatamento, a agropecuária é a atividade que mais emite dióxido de carbono (CO2) à atmosfera, além de ser a principal emissora de metano, dois gases de efeito estufa que, em excesso, provocam aumento da temperatura global.

Em 2010, o Ministério da Agricultura lançou um plano com o intuito de incentivar práticas agrícolas e pecuárias menos poluentes, por meio da oferta de financiamento. Este foi nomeado de Plano ABC (entenda aqui como o programa funciona).

Contudo, o investimento nesta política é muito tímido, diz a diretora-executiva do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Marina Piatto.

Desde o seu lançamento, o programa recebe menos de 2% dos recursos do Plano Safra, que é a principal fonte pública de custeio das atividades do campo.

 

O Safra é anunciado, anualmente, nos meses de junho e vigora até o mesmo mês do ano seguinte.

Para a temporada 2022/23, o ABC conta com R$ 6 bilhões, maior valor já direcionado ao programa, mas que ainda representa 1,75% do montante do Safra (R$ 340 bilhões).

Marina espera que o novo Ministério possa direcionar uma fatia maior para essa frente, no anúncio do Safra 2023/2024.

Além disso, ela ressalta que o governo precisa implementar assistência técnica para ajudar os agricultores a montarem os projetos, que precisam ser apresentados aos bancos no momento da solicitação do empréstimo. Segundo Marina, esse processo ainda é muito burocrático e complexo, o que afasta os produtores.

Plano Safra mais sustentável

 

Por outro lado, somente o plano ABC é pouco para fazer com que a agricultura se torne menos poluente, afirma Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e especialista em desenvolvimento agrário brasileiro.

Para ele, todo o plano Safra, por exemplo, deveria estar comprometido com metas para uma agricultura sustentável.

“É preciso envolver não só nichos de produtores e a agricultura familiar, como também toda a produção de soja, milho, cana-de-açúcar, café. Todas as commodities precisam se adequar a um processo de transição ecológica”, diz.

 

Commodities são matérias-primas para a indústria, negociadas em bolsas de valores internacionais.

Além disso, Delgado avalia que as metas precisam ir além da redução de emissão de poluentes.

“Há um conjunto de elementos de degradação ambiental que não necessariamente se manifestam como emissão de dióxido de carbono. Essa é uma métrica boa, mas não é abrangente para medir a degradação ambiental”, diz.

Segundo ele, é possível estabelecer, por exemplo, limites de uso de água ou de agrotóxicos por fazenda.

G1